Sexta-feira, 10 de Junho de 2011

AMARELEJA - PORTUGAL A PÉ

 

Por: Nuno Ferreira, Terça Feira 7 de Junho de 2011

 

http://www.cafeportugal.net

 

Portugal a Pé - «O Ministério da Cultura? Não manda para cá nenhum graveto»

«Abalei do Alentejo/ Olhei para trás chorando/ Alentejo da minha alma/ tão longe me vais ficando». Nuno Ferreira faz uma viagem emocional ao Alentejo encostado à fronteira. Na Amareleja, arredada de todas as notícias, há homens e mulheres plenos de histórias e de cante na voz. O jornalista escuta histórias de abandono e deixa «este canto deserto, envelhecido e esquecido do país, com um nó no estômago».

 

Abril de 2008. As primeiras ruas da Amareleja estendem-se uniformes, as casas em banda de persianas fechadas logo pela manhã, como que preparadas para a hora do calor. Uma mulher cigana, de lenço a cobrir a cabeça, dá de beber aos cavalos junto a um poço com os painéis da recente central solar fotovoltaica como fundo. Onde está agora a central existiu em tempos o aeródromo Cifka Duarte, inaugurado pelo Estado Novo a 30 de Maio de 35. São desse tempo estas quadras: «Oh aldeia de Amareleja, ganhaste o galhardão, ofereceste ao Estado Novo o campo de aviação». O campo, três pistas de terra xistosa e dura, acompanhadas de uma pequena casa para combustível, ainda teve alguma actividade durante a IIª Guerra Mundial. Ultimamente servia de pouso a avionetas de transporte de haxixe para Espanha. 
Graças a Deus estamos em Abril. O termómetro marca uns suaves 27 graus. Amareleja é a terra mais quente e com mais horas de sol do país e das poucas vezes em que é notícia, é-o por causa dos termómetros. «Deu 47,8 ainda o Vitinhas era vivo, há uns 13 anos, até cá veio o Correio da Manhã», disse-me mais tarde um local, dos muitos preparados para dormir no alpendre à noite, caso seja necessário.

Sociedade Recreativa Amarelejense. Um grupo de quatro reformados joga dominó, antes de almoço, na grande e muito alentejana sala principal, uma sala branca, o tecto alto em forro em madeira, as janelas abertas para um pátio que esconjura o calor. Molduras antigas guardam relíquias de outros tempos. Ao fundo, junto à mesa de bilhar, tacos formam um triângulo que rodeia um rádio a válvulas. Ao lado, na parede, um suporte em madeira trabalhada onde assentam os tacos de bilhar, com dois pequenos espelhos e contas rodeia um relógio antigo de parede.

Os quatro jogadores de dominó são os veteranos António Honrado Costa, José Ferreira Cantarinho, António José Ferreira e Manuel Carrilho. «De manhã é o dominó e ao fim da tarde o xito (a malha)». São todos veteranos dos «tempos da miséria» e quase escarnecem da palavra crise balbuciada pelos mais novos. José Ferreira Cantarinho foi empregado de café, guardador de vacas e contínuo da Sociedade durante 20 anos. Estudou apenas até à quarta classe. «Dizem que a vida está má, a vida era má. Só se conseguia trabalhar nas ceifas e na apanha da azeitona. Tínhamos de sair e procurar trabalho fora daqui. Eu fui para Bucelas».

António José Ferreira veste uma camisa preta e um boné preto. «Fiz podas, andei nas ceias, trabalhei numa fábrica de automóveis em Amiens, na França e aguentei 16 abaixo de zero na Suíça em estufas».

À hora de almoço a Sociedade dá almoço na mesma sala a meia dúzia de trabalhadores da central fotovoltaica, quase todos vindos de fora. Saio para comer noutro lado e acabo a refeição com queijo polvilhado com orégãos, metido antecipadamente no micro ondas.

Ao fim da tarde, os reformados reúnem-se junto à Torre do Relógio e ao Centro Social. Tal como em Pias, a igreja que deveria acompanhar a torre não foi terminada por falta de verbas. Uns jogam o xito (a malha) enquanto outros assistem sentados em bancos corridos de madeira, encostados ao muro branco que dá para o ocre da torre. A maioria usa o boné inclinado na cabeça.

Agostinho Caetano chega de tractor à partida de xito. É mais um dos velhos da Amareleja mas não arrumou as botas ainda. No dia seguinte, hei-de vê-lo na estrada de novo com o seu tractor. «Trabalhei nas obras em Lisboa, na Suíça e na França. Estive 12 anos fora em vários sítios. Onde estive mais tempo foi na França, na beterraba e a construir jardins. Dantes, ia muita gente daqui para lá. Muita gente. Esta malta que você vê aqui no xito toda foi à França. Muitos ficaram lá. Agora é tudo máquinas. Esses engenheiros da energia solar só querem é máquinas...»

Nessa noite, o Grupo Coral da Sociedade Recreativa Amarelejense vai ensaiar. Domingos José Rosado, o ensaiador, chega com fotos de actuações recentes noutras povoações do Alentejo. Os homens juntam-se para as ver.

«Num ano, tivemos 15 saídas. Fomos a todas: Tires, Paivas, Granja, Castro Verde. Em Castro Verde, arrebentámos com aquilo tudo. Desfilámos na rua e actuámos ao ar livre. Foi muito comovente. Havia pessoas a chorar no grupo coral».

Outros deixam-se ficar sentados de costas para a parede, um copo de tinto e pedaços de porco preto espetados em palitos de madeira, com as palavras SOCIEDADE RECREATIVA AMARELEJENSE por trás.

«Eu cantei nalguns grupos», explica Domingos, um homem de meia-idade, exemplarmente penteado e de camisa às riscas, “ mas este foi criado por mim há um ano e tem sido sempre ensaiado por mim. Criei o grupo...faz um ano no dia três de Março...”

Domingos utiliza o cancioneiro tradicional mas também muitas modas que pertencem apenas à Amareleja. «O Alentejo tem um cancioneiro tradicional excepcional. Também temos modas só daqui, eu lembro-me de modas com mais de 40 anos». Domimgos escreveu uma moda dedicada à central fotovoltaica. «É bastante lenta».
Na vila existem mais dois grupos de cante alentejano. «Ouça, isto não é nada, quando eu era rapaz havia cinco. Esta colectividade, nos anos 50, tinha 11 mil sócios, agora tem 2.800».

Domingos explica que o principal é ter-se sentido de responsabilidade. «Somos 24 homens com três altos. O nosso ponto foi considerado o melhor ponto do Alentejo na Expo 98». O grupo de Casa do Povo tem algumas mulheres: «A voz feminina tem requinte, é mais fina».

O ponto é um homem grave, sério, José António Silvério Arante: «Você desculpe, quando o vi no xito à tarde, tirando fotografias, fiquei a meios que desconfiado. Não me leve a mal, a gente não sabe quem é».

São 22 horas. Subo com o grupo de 24 homens para o sótão acanhado e em madeira da sociedade. Pergunto-me como caberão todos ali dentro. Domingos explica que ali se vive assim: «É o que temos. Vivemos dos apoios das autarquias. O Ministério da Cultura? Não manda para cá nenhum graveto. As verbas são criadas pelo associativismo e pelo desporto. E dão mais atenção ao desporto. Praticamente comemos só os torrados».

Alinham-se à minha frente em filas de três homens, numa composição de rostos: O grave de Arante, um bonacheirão e rosado, diria que cigano, outro muito branco e seco. Domingos explica a minha presença: «Este senhor é jornalista...e vai assistir ao ensaio».

O ponto começa a cantar no pequeno e acanhado sótão da Sociedade: «Quando eu vejo alguém lavrando, lembrando o tempo passado...». Ninguém esconde o lado emocional do cante e o seu papel numa época em que se vivem de novo tempos duros e difíceis. Alentejo mais profundo que aquele não existe, a 84 quilómetros de Beja, outros tantos de Évora, 24 de Renques de Oliveiras até Moura e apenas 9 para a vizinha Valencia del Mombuey, numa das regiões mais pobres de Espanha. «Abalei do Alentejo/ Olhei para trás chorando/ Alentejo da minha alma/ tão longe me vais ficando», canta, os olhos fechados, em plena concentração, José Arante, o «ponto» do Grupo Coral da Sociedade Recreativa Amarelejense.

«A central empregou pessoal de fora, os campos estão todos nas mãos dos espanhóis que só plantam olival, não há trabalho», desabafará mais tarde o mesmo José Arante.

A maioria dos 2. 700 habitantes da Amareleja vai a Espanha abastecer-se de gás, gasóleo e carne. «Até nisso, os espanhóis nos ganham. Uma bilha de gás custa lá 14 euros e aqui 24. Um quilo de entrecosto ali em Valencita (Valencia del Mombuey) custa um euro, aqui oito». Tratar da saúde, na vila, é até às 14h00. «Temos consultas até às duas da tarde. Urgências? Em Moura, a 24 quilómetros».

Os mais jovens são os mais desanimados. «Abro a colectividade às 10h00 e fecho à uma ou duas», explica o homem que tem a seu cargo a Sociedade Recreativa Amarelejense juntamente com a mulher. «Tenho uma folga por semana. Isto assim há três anos. Estou com uma depressão. Descansar? Somos cinco lá em casa e só eu trabalho...» A propriedade? «Está toda nas mãos dos espanhóis. Eles plantam olival, só há trabalho na apanha da azeitona se houver».

Deixo este canto deserto, envelhecido e esquecido do país, com um nó no estômago. Os gigantescos painéis solares acompanham-me até pegar a estrada para Póvoa de São Miguel. Cada poste de madeira esconde um ninho de cegonha. Mal ouvem os meus passos desatam a esvoaçar em cima da imensa e dourada planura. Um cigano oferece-me boleia numa carroça. «Obrigado, vou continuar a caminhar».


(*) Nuno Ferreira nasceu em Aveiro em 1962. Licenciou-se em comunicação social na Universidade Nova de Lisboa. Foi colaborador permanente do semanário Expresso de 86 a 89, ano em que ingressou nos quadros do jornal Público (até 2006). Nos últimos 20 anos fez reportagens de cariz social. No Jornal Público manteve uma crónica satírica intitulada “Ficções do País Obscuro” e escreveu sobre música popular americana. Recebeu, entre outros, o Prémio de Jornalismo de Viagem do Clube de Jornalistas do Porto com o trabalho «Route 66 a Estrada da América» (1996). No ano seguinte recebeu o Prémio de Jornalismo de Viagem do Clube Português de Imprensa com o trabalho «A Índia de Comboio». Em 2007 publicou conjuntamente com Pedro Faria o livro «Ao Volante do Poder».

 

amarelejando às 00:57
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