“Faleceu nesta aldeia, no dia 11 de Novembro de 1922, um nonagenário chamado Manuel Agostinho que, pelas suas chocarrices ficará célebre nesta terra, tanto mais que, até no seu enterro o seu temperamento jocoso, foi demonstrado. Este velho, (que até aos últimos momentos conservou as suas faculdades mentais), esperava a morte quási com entusiasmo pedindo a todos os seus contemporâneos que o acompanhassem à última morada, e se divertissem nesse dia.
Para isso, de há anos para cá, vinha depositando em várias adegas, dinheiro para a compra de vinho, que deveria ser bebido no dia do seu funeral, tendo também encomendado, e pago 4 foguetes para dar mais realce ao festejo… “fúnebre.”
Ao sentir aproximar-se o seu último dia, nomeou de entre os seus amigos, uma comissão que velasse pela execução dos seus desejos, fazendo-lhe entrega n’essa ocasião de uns versos, feitos por ele, que deveriam ser recitados, à beira do seu coval.
Pediu que a banda filarmónica o acompanhasse, mas que durante o trajecto não tocassem marchas tristes, para evitar tristeza ao acompanhamento, e para ele próprio não ter pena de abandonar a Amareleja.
Pediu mais que, ao lado do caixão seguissem dois homens com garrafões de vinho, mas, que à ida para o cemitério, ninguém bebesse, para evitar barulhos, que lhe podiam originar dor de cabeça.
Os versos mal feitos, é verdade (mas não admira porque o autor era analfabeto) são os seguintes:
I
Já cumprimos o pedido
Do nosso amigo leal,
Pois viemos acompanhal’o
‘Té à beira do coval
Por este lado está servido,
Agora Deus o ajude;
(Diz ele) -Fiz o que pude
Vamos nós lá a beber
O vinho à sua saúde
Façamos uma parada
Aqui à entrada da aldeia
O amigo já não passeia
E já não precisa de nada.
Já encetou a jornada
Quatro foguetes no cabo
Da festa, p’ra que tudo veja,
Que já hove em Amareleja
Um enterro festejado.
Faremos ‘inda outra parada,
No meio daquela travessa
Não queiramos que esqueça
O nosso amigo … de pançada,
Bebemos outra golada,
Da pinga que nos testou
E que ainda se não acabou
E não queremos que sobre nada
Pra ficar em nomeada
O dia em que se enterrou.
Escutem… se o padre da Póda
For quem vier ao enterro
Deem-lhe vinho sem medo
Antes de me acompanhar à cova
É essa a melhor prova
P’ra boa encomendação
E eu como bom christão
Quero ser bem encomendado
P’ra ir bem encaminhado
P’ró reino da salvação
A quem me enterrar… o coveiro
Dái também uma gotinha
P’ra que faça uma cova lisinha
Não vá eu esfolar o traseiro
É o José Rita Rafeiro
Que está agora ao serviço?
Talvez depois em eu indo
Já haja outro empregado
Talvez bem mais malcreado
E é isso que eu estou sentindo.
Uma coincidência digna de nota:
O velho em questão, dizia constantemente que maior satisfação levaria deste mundo se soubesse que morria em dia de São Martinho .
E desejava que fosse esse o último dia da sua vida, porque sendo esse dia, dia de bebedeiras, era provável que a corte celeste estivesse no mesmo estado e sendo assim facilmente poderia cahir na graça dos seus membros pois sempre fora um devoto a Bacho.
Foram pois cumpridos os seus desejos.
Deus chamou-o a si no dia de S. Martinho, os versos foram lidos à beira do seu coval, bebericando-se a valer no regresso e subindo ao ar após o seu funeral os foguetes para esse fim preparados.
A filarmónica acompanhou-o também e em vez de uma marcha fúnebre executou uma marcha grave.”
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