Uma ode ao porco preto de montado. Daqueles a sério, alimentados a bolota e criados, livres, entre chaparros!
Com a chegada dos grandes frios, chega também a época da matança do porco no nosso Alentejo.
Antes do advento das arcas frigoríficas, frio, salga e fumeiro eram os únicos factores de conservação de uma carne que tinha de dar para um ano inteiro, desempenhando um papel essencial no sustento (na mantença) das famílias rurais.
Não admira por isso que os ciclos da matança tenham ganho contornos de festa, marcados por momentos de convívio, com rituais próprios e gastronomia adequada.
A tradição já não é o que era, mesmo assim pode dizer-se que a festa começa de véspera, já que os preparativos também são festa.
De entre os convivas escolhem-se aqueles que irão apanhar o bicho que de véspera foi separado, tendo este jejuado até à manhã fatídica.
Conhecido de Norte a Sul do País, o método para abater o porco (esta parte dispenso), passemos adiante os pormenores mais sangrentos do sacrifício, mas recorde-se que o sangue é aparado para um alguidar, agitando-se até arrefecer para evitar que solidifique, embora haja quem lhe junte vinagre, vinho tinto ou sal com o mesmo objectivo. Servirá posteriormente para temperar os chouriços.
Durante a queima, limpeza e raspagem, vão-se aceitando apostas relativas ao hipotético peso do animal, cujo vencedor, se orgulha do olho que tem para estas coisas.
Já são horas de matar o outro bicho, que por estas bandas se afoga com copinhos de vinho licoroso e bolinhos caseiros servidos pela dona da casa. Com parte do sangue que se “apara” do porco costuma também ser confeccionado um petisco com o sangue cozido e temperado com bastante cebola, laranja e coentros, que é servido durante a manhã.
A operação de abertura do porco é sempre um momento de alguma precisão, Se queres ver o teu corpo, abre um porco” diz um dos convivas, referindo-se ao provérbio que dá conta das semelhanças viscerais entre um e outro animal.
No porco tudo se aproveita, é chegada a altura de retirar as tripas, operação esta que requer alguma atenção de modo a que nenhuma se rebente. Depois de depositadas em grandes alguidares, serão posteriormente lavadas pelas mulheres da casa, de preferência numa ribeira ou barranco que leve corrente, para que depois sejam cheias com a carne do alguidar que resultará nos mais diversos tipos de enchidos que se hão-de curar suspensos em varapaus no fumeiro da enorme chaminé tradicional.
Reparem só no pormenor da unha da Sofia. Lá se foi a manicure francesa.
As “alandias” e as febras são assadas no lume entretanto preparado. Aproxima-se a hora do almoço. Com ela vem também a confraternização, razão senão principal, pelo menos importante, pela qual foi sacrificado o bicho. Quando era pequena os homens comiam as febras e davam-nos o rabo do porco para assar, era uma brincadeira que nos deixava bastante aborrecidos.
Mais uma especialidade, ao almoço serve-se a “SurraBurra”, um prato preparado com o fígado o “bofe” do porco, temperado com alho, cebola o sangue do porco e algumas especiarias.
Durante a tarde preparam-se as carnes que são colocadas em alguidares de barro e temperadas para mais tarde fazer os enchidos.
“Amanha-se” o presunto que no dia seguinte, é introduzido em sal (10 kg aprox.), sendo-lhe colocada por cima uma tábua sobre a qual se põem pedras grandes. Fica assim 30 dias. Depois é ligeiramente fumado, para se conservar, é barrado com uma massa feita de colorau, massa de pimentão e azeite e introduzido numa talega de pano e só se come no ano seguinte.
Este é um ritual que se repete ano após ano por esses montes e aldeias fora, que apesar das ligeiras introduções técnicas, se tem mantido inalterável ao implacável relógio do tempo.