A Voz da Aldeia
João Garcia(In "Jornal Expresso" de 21 de Fevereiro de 1998)
De quadras também vive o Entrudo da Amareleja. Situada na raia alentejana, pela vila passou, nos anos de guerra, muito contrabando. De Espanha também terão vindo as «danças» ou «estudantinas», manifestação semelhante às «murgas» andaluzes e às «brincas» de Évora.
Sob a direcção do mestre que conduziu os ensaios, e ao ritmo da concertina, o grupo, em regra composto por mais de uma dezena de elementos, percorre o povoado, detendo-se junto às tabernas ou à porta de algum morador que esteja pronto a recebê-lo e a oferecer o petisco.
O tocador de Acordeão é um elemento essencial das estudantinas da Amareleja (Foto de: António Pedro Ferreira) |
O Acordeão faz ouvir «uma música ritmada, de compassos binários, fácil de entrar no ouvido», na descrição de António Rações, um dos animadores e «mestre» do Entrudo local. Os versos, também «de má-língua», são escritos com grande antecedência e afinados em sucessivos ensaios, que ocupam as três a quatro semanas anteriores ao Carnaval.
Com os elementos da estudantina dispostos em roda, as quadras são cantadas em coro. «É a voz do povo.» Dois ou três elementos, mascarados, ocupam o centro e vão reproduzindo as situações que as quadras relatam. À volta, o coro - vestido a rigor, calça, colete e chapéu preto, faixa à cintura e lenço ao pescoço - responde com quadras que são o julgamento da moral popular.
Segundo Virginie Laffon, uma etnóloga francesa que viveu em Amareleja e estudou estas «danças» onde praticamente não se baila, cada mestre chega a ser responsável por duas estudantinas. «Uma para brincar», exibida na segunda-feira e composta de críticas à vida social, onde os adultérios são a principal fonte de inspiração, e uma outra, mais «séria», guardada para terça-feira gorda, de conteúdo político.
Embora as danças não sejam vedadas às mulheres, são sempre homens que representam, travestindo-se quando é caso disso. «Porquê não sei, mas não ficava bem, e por isso não o fazem, as mulheres criticarem outras mulheres», justifica António Rações. Os visados pelas críticas nunca são directamente identificados, mas a construção dos versos, mantidos sob rigoroso sigilo até à representação pública, raramente deixa margem para equívocos entre os locais.
José Branquinho evoca outros tempos, quando dizer versos podia custar mais do que discussões de rua. «Era quando as danças iam à censura do regedor e só eram ditas se ele estivesse de acordo.» Usavam-se, então, alguns truques. «Era rude, mas era fino. Num momento dizia-se bem, para logo deitar abaixo. Dizíamos que era uma na pá, outra no olho, ou uma na caixa e outra na racha.» Foi assim num ano em que os homens garantiam o sustento na construção de estradas: «Quando fomos para a estrada / com a picareta na mão / houve alguns que não puderam / levantá-la do chão... // Cansados pela fraqueza / onde irá isto chegar / a fome é que nos obriga / não a pudemos aguentar.»
Depois de uma época em que quase desapareceram, as estudantinas voltaram. A escola organiza «uma saída», quatro mestres garantem outras tantas. O pior é encontrar tocadores. Há quem saiba tocar a concertina, mas faltam os instrumentos que, por regra, são acompanhados por castanholas, ferrinhos e pandeiretas - estas últimas indispensáveis para recolher umas moedas entre a assistência.
Com a falta de tocadores, o David, 11 anos, franzino para a idade, não sabe que há-de «fazer à vida». Aprendeu a tocar de ouvido e já tem quatro danças apalavradas para este Carnaval. «O ano passado foram duas, e fiquei derreado, que a concertina pesa e é o dia todo.» Orgulhoso por ser tão procurado, quer mostrar que o corpo é pequeno mas resiste a tudo: «Já fui operado sete vezes, duas ao coração.»
A indiciar que vem de longe o Entrudo da Amareleja está o nome dado aos «entrouxados», que desde o início de Fevereiro começam a aparecer pela vila. São os «entremezes», designação herdada de uma modalidade de representação pré-vicentina, profana e de crítica de costumes.
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Esta reportagem foi retirada daqui.